Coluna da Digi # 80 – Histórias de uma Natal Assombrada

Texto do qual gosto muito publicado originalmente na Revista Papangu e depois, em o9.11.2009, na Diginet. Espero que gostem e não se assustem.

Feliz Natal.

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Histórias de uma Natal Assombrada

Dia desses, fui fazer uma pesquisa pelas ruínas da Biblioteca Câmara Cascudo, que se mantém decrépita por obra e graça da nossa querida Vilma de Faria, cuja aura está presente em cada recôndito do edifício por causa, paradoxalmente, da total ausência que o poder público estadual mantém em relação a essa e todas as outras bibliotecas sob sua responsabilidade. Em meio a montes de poeira que me fizeram espirrar 3 meses sem cessar, um calor de derreter o juízo dos poucos estudantes que têm coragem de frequentar o lugar e o barulho proveniente do intervalo do Atheneu (não é possível fechar as janelas porque não existem ar-condicionados funcionando), fui até as prateleiras que por muito pouco não desabaram quando me aproximei.

Na ocasião, manuseando livros ao acaso, me deparei com um em especial que me saltou aos olhos de súbito. Uma obra muito interessante que disserta sobre um capítulo da cultura popular de Natal que me era totalmente desconhecido. O autor é o jornalista e pesquisador Neto Pão com Ovo, filho do eminentíssimo intelectual do passado Júnior Pão com Ovo. O tema abordado na publicação é a grande incidência de fenômenos sobrenaturais na cidade do sol e se chamava “Histórias de uma Natal Assombrada”. Tão curioso fiquei diante de tão preciosa descoberta que levei comigo o compêndio sem mais demora até uma das mesas de estudos, não sem antes desviar das crateras que abundam no chão do prédio e tomando cuidado de me posicionar longe de uma das partes onde a pintura do teto está rachada e caindo sobre os visitantes.

O volume de elegante edição, capa dura, colada e costurada em couro, ricamente ilustrado e de vasto conteúdo catalogava algumas lendas urbanas surgidas em Natal em décadas recentes. Fui consumido pela leitura de imediato e separei aqui algumas das assombrações descritas no livro como exemplo para que eu possa dividir com vocês um pouco do fascínio que tive ao ter conhecimento destes formidáveis episódios que revelam uma riqueza folclórica interessantíssima. Uma peculiaridade das tais lendas natalenses ou, como o autor, jornalista Pão com Ovo, se refere: “Histórias de uma Natal Assombrada”, é que são todas histórias recentes, pois Natal, como declarou recentemente outro intelectual, Pablo Capistrano, é uma cidade em formação.

Vamos às lendas:

O FANTASMA DA AFONSO PENA

Em noites de lua cheia e lançamentos de coleções de outono/inverno, um espectro de aparência torpe e maltrapilha vaga pela rua que é sinônimo do luxo e da usura na capital potiguar. Ele sai repetindo seu mantra que é basicamente “um dinheirinho pra eu comer, um dinheirinho pra eu comer, um dinheirinho pra eu comer”, exigindo dos vivos uma pequena parcela da riqueza ostentada. Os especialistas dizem que uma pequena quantidade de dinheiro ofertada pode serenar seus ânimos temporariamente, mas para afastá-lo de vez só com técnicas  avançadíssimas chamadas justa distribuição de renda e melhores oportunidades de vida. O Fantasma, que é definido pelos místicos como uma entidade de pobreza, se refugia no morro de Mãe Luíza e provoca um leve incômodo nos mais abastados da cidade, frequentadores daquela avenida, porém estes e também os políticos natalenses preferem fingir que não o veem (apesar destes últimos acenderem muitas velas para o dito ser em época de eleições).

O LOBISOMEM DE PONTA NEGRA

Surgiu há alguns anos quando um turista italiano foi mordido por uma menina de 13 anos numa noite de entorpecida agitação na orla de Ponta Negra. Desde esse dia, ele assombra a beira-mar do tradicional bairro praiano natalense e a sua assustadora presença uivando ensandecido em noites de lua nova (porque ele prefere as novas) afugentou os moradores nativos. O “Lobisomem Italiano em Natal”, como foi batizado pelos doutores em Ciências Ocultas mais respeitados da capital, só se sente saciado perante a oferta de jovens garotas potiguares para que possa praticar sua cópula interespécies. Para evitar esse monstro de caráter maldito, é preciso nunca sair do caminho seguro, mantendo-se longe de seu território preferencial, a Avenida Beira-mar em Ponta Negra e a rua do antigo Sargent Peppers no alto Ponta Negra. Os habitantes humanos de Natal temem bastante o lobisomem, mas segundo se comenta a população, a Prefeita da cidade e os secretários de turismo também sentem indescritível pavor do bicho, sendo incapazes de fazer alguma coisa para combatê-lo.

A CAVEIRA DE BURRO DA CULTURA

Em 1903, quando se estava construindo o Teatro Alberto Maranhão, que na época seria chamado de Teatro Carlos Gomes, um dos operários de nome Ricardo Porpino Carvalho enterrou uma caveira de jumento embaixo de uma das colunas que alicerçam o prédio. Ao fazê-lo, decretou: “Nessa terra nenhuma manifestação cultural genuína tocará o coração do povo, nada germinará e frutificará, todo trabalho em prol do desenvolvimento da boa música, literatura, dramaturgia e artes plásticas será em vão. Apenas alguns poucos testemunharão o fracasso desta civilização que verá o tempo avançar sem nunca prosperar, que testemunhará a cidade crescer sem nunca encontrar uma real identidade. Nesta cidade ninguém nunca sentirá orgulho do que é, foi ou poderá vir a ser!” Após dizê-lo, deu uma risada sinistra e partiu para Salvador. A caveira de burro, porém, permaneceu entre nós, emanando seus poderes de atrofiamento cultural, cultivando nos espíritos o comodismo e semeando a má vontade em todas as camadas sociais. Certa vez, o jornalista, advogado e dublê de paleontólogo Marcus Vinícius (MV) tentou organizar uma escavação para encontrar e levá-la embora da cidade, mas foi impedido pela radiação nociva à livre iniciativa que emana do artefato ósseo diabólico.

O VAMPIRO DA ASSEMBLEIA

Este monstro sanguessuga extrai dos cidadãos pagadores de impostos a energia, o vigor e uns tantos mil Reais por mês que permitem sua sobrevivência e enfraquecem as pessoas de bem. Dizem que se refugia em gabinetes de deputados estaduais, mas também encontra uma variante na câmara de vereadores, e convive com diversos fantasmas, também funcionários do lugar. Mas sobre estes últimos, não há indícios suficientes de que existam de fato, uma vez que eles nunca aparecem na assembleia, apesar de ser atribuído a eles o desaparecimento de vultosas quantidades de recursos públicos. Um história de verdadeiro terror.

A MALDIÇÃO DO JÁ TEVE

Não se sabe ao certo quem foi o feiticeiro que, sabedor das artes do oculto, lançou sobre Natal esta terrível maldição. O que se sabe é que um dia, quando a cidade era pouco mais que uma fazenda iluminada, ele foi às margens do Potengi e praguejou: “Não deixarás de ser província!” Desde então passamos a exibir uma incompatível mania de grandeza. Exigimos do universo que fôssemos dele o centro absoluto e passamos a querer ser mais modernos, mais cosmopolitas, mais grandiosos, queríamos ter a maior ponte de todos! E assim tivemos de tudo que o nosso olho grande, nosso rei na barriga e nossa total e absoluta falta de “semancol” poderia prover. Como todas essas coisas eram produtos de um delírio coletivo de megalomania, logo os grandes projetos se encerravam. Um pai de santo, meu vizinho, disse que muito dessa maldição também é resultado da caveira de burro e do esforço uníssono de população, autoridades e mediocridade do além-vida em não deixar que nada prospere por muito tempo. Com isso, a cidade onde já se teve de tudo, caminha rumo ao nada sufocada por sua própria vaidade desmedida.

OS ZUMBIS DO SOL

Eles se deslocam em grupo, aparentemente a esmo, hipnotizados pelos meios de comunicação de massa que, pos sua vez, são controlados por manipuladores chamados de “formadores de opinião” já que introduzem nas mentes ociosas das criaturas suas próprias vontades, valores morais e normas de comportamento a serem seguidas e adotadas por todos eles. Quando um zumbi começa a frequentar um lugar, utilizar uma roupa ou adotar um padrão de comportamento qualquer “sugerido” pelos “formadores de opinião”, logo é imitado por seus semelhantes que procuram fazer tudo exatamente igual. O aparecimento destas hordas de mortos-vivos em nossa cidade pode ser atribuído ao excesso de exposição solar na moleira, fato altamente perigoso para os miolos que, sem a solidez da boa educação, raciocínio lógico e cultura geral, se revelam demasiado flácidos e vulneráveis à alta temperatura, derretendo docilmente e originando tais aberrações. As maiores concentrações destes débeis monstos caminhantes podem ser vistas em concertos de verão, boates de Petrópolis e Tirol, além de acorrerem sempre no início de dezembro em desvairada perseguição aos trios elétricos que chegam da Bahia para inebriá-los com um espetáculo de sons, luzes e cores. Foi daí que surgiu o ditado: “Atrás do trio elétrico só vai quem já morreu!”

Já era quase noite quando eu fechei o livro “Histórias de uma Natal Assombrada”. Os relatos que expus aqui são apenas alguns poucos retirados do extenso dicionário de lendas reunidas pelo pesquisador e organizador da obra. Fiquei muito impressionante com tantas fantasias populares natalenses surgidas nas ruas e praias da cidade. Será preciso, a partir de agora, tomar mais cuidado quando andarmos distraídos pelas veias do organismo urbano, pois além da violência crescente dos vivos que ameaça nos converter em mortos, existem também todas essas criaturas do breu a nos aterrorizar com suas artimanhas do além. Eu digo é VÔTS!

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6 Respostas to “Coluna da Digi # 80 – Histórias de uma Natal Assombrada”

  1. Bia Madruga Says:

    haha
    que sarcasmo mais elegante nesse texto todo 😉

  2. carlosaugusto77 Says:

    HAHA, muito bom!! Caveira de Burro tem umas vinte enterradas em Natal…

  3. Mau Fontinele Says:

    Porra velho… quantos gibis bacanas sairiam daí?

  4. modrack Says:

    Que coisa, ainda bem que é tudo faz de conta né? seria horrível morar num lugar assim.

  5. francsico Gildevanio Says:

    ai grande gostei

  6. olguitas Says:

    O “povinho” de Natal se resume nisso tudo e mais uns milhares de M… Ô pooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooovo BESTA!

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