Coluna do Novo Jornal – 012 – O fabuloso Anthony Burgess e sua Laranja Mecânica – 13.11.2010

Uma crônica literária. Espero que gostem.

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O fabuloso Anthony Burgess e sua Laranja Mecânica

 

Existe um momento na vida em que você finalmente se dá conta de que está, sim senhor, envelhecendo. É quando subitamente começa a pedir para baixar o volume do som em vez de aumentar ou quando dores surgidas em práticas esportivas começam a demorar mais a ir embora. Porém, o que mais denuncia a desabalada carreira ladeira abaixo é o estranhamento que passa a nos causar certas atitudes da juventude. Porque, diferentemente de nós, que temos o privilégio da experiência adicional, os mais moços não buscam sentido em tudo o que fazem, reagindo muito mais a uma explosiva combinação de instintos, hormônios em ebulição e uma necessidade extrema de aceitação social em suas ações automáticas.

Vez em quando leio algo como “adolescentes de torcidas organizadas brigam em escolas (ou praça de alimentação de algum centro de compras) por causa de futebol” e fico me perguntando “por que esses moleques fazem isso?” Também já chego a me indignar com certas atitudes vazias de violência e vandalismo como um bom adulto deve fazer. O auge da consciência de minha nova condição veio quando, certa vez, eu disse algo como: “essa garotada está perdida.”

Na Inglaterra, no meio do século passado, um cidadão chamado Anthony Burgess passou por uma experiência de não reconhecimento dos adolescentes, seus compatriotas. Burgess olhava em volta e tudo o que via era delinquência juvenil, casos de violência gratuita e toda sorte de crimes cometidos por rapazes pra lá de inquietos. Para expressar todo esse estranhamento, foi escrito o livro “Laranja Mecânica”, romance que compõe a santíssima trindade da ficção científica juntamente com “1984” de George Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, ambos também ingleses.

A história fala de uma Inglaterra do futuro em que ninguém costuma sair à noite por causa dos altos índices de violência. As ruas estavam tomadas por jovens arruaceiros que batiam em qualquer um que cruzasse seus errantes caminhos. Adultos e menores de idade coexistem num mesmo país, porém em mundos distintos. Uns trancados em casa apavorados, outros causando desordem nos becos sinistros em busca de libertação. Para temperar, um governo autoritário de ultradireita “administra” a situação.

Para enfatizar a distância entre jovens e adultos, os adolescentes se comunicam numa linguagem própria, um idioma das ruas repleto de gírias que foi inteiramente desenvolvido pelo autor exclusivamente para o livro. O protagonista e narrador de “Laranja Mecânica”, Alex, conta a história neste dialeto próprio. O autor, apaixonado por línguas e linguagem, falante de vários idiomas e estudioso de outros tantos, criou o Nadsat, falado pela moçada daquela hipotética Inglaterra.

Vejam o exemplo da seguinte frase: “Havia ali algumas malenk domis antigas que eram muito horrorshow, meus irmãos, com alguns plebeus starres vivendo nelas e pititsas velhas com gatos que eram surdas e viúvas, e que nunca haviam recebido o toque de tchelovek nenhum em todas as suas puríssimas jiznas. Um Maltchik como eu, sempre que itiava a uma vizinhança como essas e videava a situação toda com meus druguis não parava de smekar.”

É meio esquisito, certo? Até que dá para intuir os significados de algumas palavras pelo contexto, mas ainda assim ficamos na dúvida. Era essa a sensação de estranhamento que Burgess pretendia extrair dos leitores ingleses em 1962. Porém, mesmo com o inusitado da situação, o bom leitor, ao concluir a obra estará tão habituado à linguagem daqueles retardados e violentos jovens ingleses que compreenderá quase que a totalidade do que eles falam. É outro efeito de gênio produzido pelo escritor: a língua criada por ele é tão bem elaborada ou demonstrada tão claramente que acabamos por aprendê-la na medida em que a leitura avança.

O romance fala de um grupo de rapazes na casa dos 17 anos que sai pelas ruas de Londres todas as noites praticando violência contra qualquer pessoa que encontrem, saqueando comércios e gastando o dinheiro arrecadado em álcool e outras drogas sintéticas. Um dia Alex, que é o líder do pequeno núcleo criminoso, se excede em uma sessão de pancadaria e acaba por cometer um assassinato. Preso, é submetido a um processo (promovido pelo Estado) de “reabilitação” baseado na teoria de condicionamento clássico de Pavlov, tornando-se um ser humano incapaz de praticar o mal.

Alex recebe um tratamento e é libertado, mas logo começam outros questionamentos a respeito de sua nova condição. Um homem privado de sua capacidade de fazer escolhas é ainda um homem? Até que ponto o Estado pode interferir na vida de um indivíduo em prol da coletividade? Os governos têm o direito de fazer qualquer coisa para obrigar um cidadão a praticar apenas atos socialmente aceitáveis? São algumas das questões que os personagens que cruzam o caminho do protagonista provocam enquanto este vem sendo manipulado e agredido sem condições de reagir.

A narrativa de “Laranja Mecânica” é arrebatadora. O comportamento intenso, insano e quase inexplicável dos jovens delinquentes, a maneira como Alex se converte em vítima num segundo momento, recebendo tratamento tão cruel da sociedade quanto ele próprio havia sido no passado, a relação do Estado com o indivíduo e a tentativa de controle exercido por ele conduzem a uma profunda reflexão. Quando decidiu criar uma linguagem própria para seus jovens e narrar o livro em primeira pessoa pela voz do principal desses marginais juvenis, Burgess quis reproduzir a sensação que ele tinha na Inglaterra dos anos 1960, a de que ele não falava o mesmo idioma da juventude, não compreendia o que eles queriam, não sabia o porquê de tanta violência inconsciente. Os leitores também não deveriam entender bem suas palavras. Deveria ser uma compreensão com ruído para transmitir a eles a mesma sensação de deslocamento. Em Natal do século XXI, bem como em todo o mundo, imagino, todos os adultos se sentem um pouco deslocados também. Não entendemos os jovens, não vemos muito sentido em sua autenticidade vazia e ler “Laranja Mecânica” nos dá o alento de sabermos que não somos os únicos a passar por isso.

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