Coluna do Novo Jornal – 084 – Esporro – A cultura do underground – 31.03.2012

Esporro – A cultura do underground

18 Capa Esporro FECHADA

Em 1998, num show de rock na Ribeira, conheci uma banda carioca de hardcore chamada Jason. Seus integrantes, Flávio Flock, Vital e Leonardo Panço viajavam pelo Brasil em longas turnês e o nordeste era uma das regiões mais frequentadas pelos músicos. As músicas do grupo, que misturavam bom humor e ferinas críticas sociais logo conquistaram a mim e um grupo de amigos próximos, convertendo-nos em fãs e levando-nos a voltar à Ribeira sempre que a banda vinha dar com os costados em Natal.

Anos depois, em 2004, por citar a banda em meu primeiro livro, “Verão Veraneio”, o guitarrista Leonardo Panço, que também é jornalista e escritor, quis me conhecer pessoalmente no recém-inaugurado Centro Cultural Dosol, na Rua Chile. Trocamos livros. Dei-lhe um exemplar do “Verão” e ele me deu o “2001: uma odisseia na Europa” com os relatos de uma turnê de 60 shows que o Jason fizera pelo velho continente. Papo vai, papo vem, a confluência de trabalhos e as correspondências trocadas nos anos seguintes nos levaram a cogitar que seu próximo livro fosse lançado pela Jovens Escribas, editora que mantenho desde 2004 com outros autores amigos.

Em 2008, Panço publicou o livro de crônicas “Caras dessa idade já não leem manuais.” Infelizmente, sem a participação da nossa editora, pois passávamos por um ano de poucos lançamentos e não tivemos capital para bancar a publicação, ainda que em parte. Quando li o livro depois de pronto, o arrependimento bateu forte. “Caras dessa idade…” é um excelente livro de crônicas, escrito por um autor fora do esquema de grandes editoras, dono de um pensamento claro e articulado, propondo reflexões e ideias sobre a vida, o cotidiano e as escolhas que fazemos. Ainda tive a oportunidade de escrever a orelha do livro e assumi o compromisso com o Panço de ajudá-lo no seu próximo livro, o “Esporro”, um relato sobre o underground carioca do início dos anos 90.

O livro saiu há alguns meses, no final de 2011, e a Jovens Escribas ajudou a pagar a edição, além de contribuir com alguns trechos da turnê de lançamentos do livro, ocorridos em 26 cidades de todo o Brasil. Afirmo com segurança que esta foi uma das publicações mais importantes dos 7 anos da nossa editora. A obra promove um registro histórico de uma época em que a cultura alternativa fervia no Rio de Janeiro, mas longe dos holofotes, criando as condições ideais para o surgimento de uma nova cena roqueira brasileira, cujos maiores expoentes, “O Rappa” e “Planet Hemp”, ganharam fama e fortuna.

“Esporro” conta a histórias de bandas como o “Gangrena Gasosa”, “Poindexter”, “Soutien Xiita”, “Piu piu e sua banda”, “Funk Fuckers”, “Zumbi do mato” e várias outras que viveram intensamente aquela primeira metade de década, lutando com todas as armas contra as intempéries da vida de artista no Brasil, ainda mais para músicos underground, deixando um enorme rosário de histórias não contadas e que precisavam de um narrador à altura que as reunisse e trouxesse ao conhecimento público.

Graças ao livro, todos podem agora conhecer a trajetória da banda “Gangrena Gasosa” formada por metaleiros que concluíram que muito melhor do que falar do Diabo em suas letras, poderiam citar nomes da cultura afro-brasileira como exu-caveira, pomba gira e diversos elementos do Candoblé, Umbanda e outras crenças. A banda tinha o hábito de roubar despachos de macumba e jogar no público durante os shows. Algumas de suas canções como “Saravá Metal”, “Welcome to terreiro” e “Se Deus é 10, Satanás é 666” já chamam a atenção a partir do título. Sátiras a fortes referências roqueiras como “Toops of Olodum” (o “Sepultura” tem a música “Troops of doom”), “Benzer até morrer” (“Beber até morrer” do “Ratos de porão”) e “Smells like a tenda espírita” (nome de um CD que fazia alusão à canção “Smells like teen spirit” do Nirvana).

A banda não obteve a projeção que muitos esperavam. B Negão e Marcelo D2 afirmam no livro que a ficha caiu de que eles estavam ficando famosos num dia em que foram citados pelo vocalista do Gangrena, Ronaldo Chorão, num show no Circo Voador. Porém, a carreira de músicos bem sucedidos não se tornou uma realidade para aquele grupo. Como se sabe, além de competência e talento, para alcançar a fama é preciso uma boa dose de sorte. E sorte é tudo o que não se deve esperar quando se rouba despachos de macumba para jogar nas pessoas.

Outro intrépido conjunto que aprontou muito naqueles primórdios de década foi “Piu Piu e sua banda” que, além de tocar um rock doidão que explorava os limites da irreverência, aliava o som a performances memoráveis em que nada era excessivo e tudo, absolutamente tudo era permitido. Os integrantes sempre se fantasiavam de forma esdrúxula. Certa vez, Piu Piu se vestiu de baiana e distribuiu “docinhos” envolvidos em papel laminado para o público. Ao abrirem o mimo, os enojados fãs perceberam que os quitutes eram, na verdade, cocô de cachorro.

Em outra oportunidade, o grupo levou um bode e um ganso para o palco. O bode fez xixi e o ganso saiu atacando as pessoas. Aliás, por falar em xixi, havia uma música em que o vocalista mijava num copo e bebia o produto de tal ação ali mesmo, na frente de todos. Também era normal que ele tirasse toda a roupa e promovesse espetáculos pirotécnicos nos quais ateava fogo numa guitarra e até no próprio corpo. Piu Piu nunca alcançou qualquer projeção que fosse muito além da zona sul do Rio, mas suas peripécias inacreditáveis estão agora registradas pelo contemporâneo de palcos, Leonardo Panço.

As muitas viagens de bandas como o “Beach Lizards” e o advento da “Família Hemp”, espécie de irmandade que abrangia “Funk Fuckers”, “O Rappa”, “Planet Hemp”, entre outras, além do início da carreira artística de Marcelo D2 em tempos de vacas muito magras também constam no livro. Entre os palcos nos quais os jovens se apresentavam, o “Canecão” e o “Circo Voador” figuram em alguns trechos, mas o grande cenário que serviu de incubadora para as bandas foi o lendário “Garage”, citado em boa parte do livro como o grande trampolim de toda aquela turma para as suas pequenas (ou grandes) conquistas. Para se ter uma ideia, D2 chegou mesmo a morar no lugar, dormindo no palco e trabalhando como vendedor de camisetas.

A publicação de “Esporro” pela editora inaugurou um ciclo feliz de publicações roqueiras. Em 2012, deveremos publicar a história do coletivo “Dosol” contada pelo produtor Ânderson Foca. As histórias contadas por Leonardo Panço mostraram o quão é importante para a memória cultural do país que tais episódios sejam escritos. Fico muito feliz em ter ajudado a tornar este livro uma realidade e espero que muitos outros tão divertidos quanto ele possam surgir. É o velho e bom Rock and Roll nos brindando com os melhores causos do show business, mesmo que nem sempre role tanto business assim.

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